
BRASIL
Essa seleção todo mundo já sabe de tudo. Penta-campeã, quadrado mágico, Ronaldinho, preocupação com a zaga, laterais que precisam estar em forma, etc. Portanto, me limitarei a reproduzir uma coluna do Nélson Rodrigues falando sobre a final da copa de 62, em espceial sobre o Garrincha. É certo que são temos diferentes, mas, da mesma forma, é certo que ganharemos a copa do mundo se tivermos o mesmo espírito que Nélson Rodrigues aborda em sua coluna. Vamos ao texto:
O ESCRETE DE LOUCOS
Nélson Rodrigues
1 – Amigos, a bola foi atirada no fogo como uma Joana d’Arc. Garrincha apanha e dispara. Já em plena corrida, vai driblando o inimigo. São cortes límpidos, exatos, fatais. E, de repente, estaca. Soa o riso da multidão – riso aberto, escancarado, quase ginecológico. Há, em torno do Mané um marulho de tchecos. Novamente, ele começa a cortar um, outro, mais outro. Iluminado de molecagem, Garrincha tem nos pés uma bola encantada, ou melhor, uma bola amestrada. O adversário pára também. O Mané com 40 graus de febre prende ainda o couro.
2 – A partida está no fim. O juiz russo espia o relógio. E o Brasil não precisa vencer um vencido. A Tcheco-Eslováquia está derrotada, de alto a baixo, da cabeça aos sapatos. Mas Garrincha levou até a última gota o seu “olé” solitário e formidável. Para o adversário, pior e mais humilhante do que a derrota, é a batalha desigual de um só contra onze. A derrota deixa de ser sóbria, severa, dura como um claustro. Garrincha ateava gargalhadas por todo o estádio. E, então, os tchecos não perseguiram mais a bola. Na sua desesperadora impotência, estão quietos. Tão imóveis que parecem empalhados.
3 – Garrincha também não se mexe. É de arrepiar a cena. De um lado, uns quatro ou cinco europeus, de pele rósea como nádega de anjo; de outro lado, feio e torto, o Mané. Por fim, o marcador do brasileiro, como única reação, põe as mãos nos quadris como uma briosa lavadeira. O juiz não precisava apitar. O jogo acabava ali. Garrincha arrasara a Tcheco-Eslováquia, não deixando pedra sobre pedra.
4 – Se aparecesse, na hora, um grande poeta, havia de se arremessar, gritando: “O homem só é verdadeiramente homem quando brinca”. Num simples lance isolado, está todo o Garrincha, está todo o brasileiro, está todo o Brasil. E jamais Garrincha foi tão Garrincha, ou tão homem, como ao imobilizar, pela magia pessoal, os onze latagões tchecos, tão mais sólidos, tão mais belos, tão mais louros do que os nossos. Mas vejam vocês: de repente, o Mané põe, num jogo de alto patético, um traço decisivo do caráter brasileiro: a molecagem.
5 – O Hélio Pelegrino, que é poeta e psicanalista, dizia-me, outro dia: “O brinquedo é a liberdade!” E para Garrincha o brinquedo, no fim da batalha, foi a molecagem livre, inesperada, ágil e criadora. Varou os pés adversários, as canelas, os peitos. Não tinha nenhum efeito prático a sua jogada arrebatadora e inútil. Mas o doce na molecagem é a alegria insopitável e gratuita. E não houve, em toda a Copa, um momento tão lírico e tão doce.
6 – Amigos, ninguém pode imaginar a frustração dos times europeus. Eles trouxeram, para 62, a enorme experiência de 58. Jogaram contra o Brasil na Suécia, trataram de desmontar o nosso futebol, peça por peça. Toda a nossa técnica e toda a nossa tática foram estudadas, com sombrio élan. Sobre garrincha, eis o que diziam os técnicos do Velho Mundo: “Só dribla para direita!” Era a falsa verdade que se tornaria universal. O próprio Pelé parecia um mistério dominado.
7 – Após quatro anos de meditação sobre o nosso futebol, o europeu desembarca no Chile. Vinha certo, certo, da vitória. Havia, porém, em todos os seus cálculos, um equívoco pequenino e fatal. De fato, ele viria a apurar que o forte do Brasil não é tanto o futebol, mas o homem. Jogado por outro homem o mesmíssimo futebol seria o desastre. Eis o patético da questão: a Europa podia imitar o nosso jogo e nunca a nossa qualidade humana. Jamais, em toda a experiência do Chile, o tcheco, ou inglês, entendeu os nossos patrícios. Para nos vencer, o alemão ou suíço teria de passar várias encarnações aqui. Teria que nascer em Vila Isabel, ou Vaz Lobo. Precisaria de toda uma vivência de boteco, de gafieira, de cachaça, de malandragem geral.
8 – Aí está: no velho Mundo os sujeitos se parecem como soldadinhos de chumbo. A dessemelhança que possa existir de um tcheco para um belga, ou um suíço, é de feitio do terno ou do nariz. Mas o brasileiro não se parece com ninguém, nem com os sul americanos. Repito: o brasileiro é uma nova experiência humana. O homem do Brasil entra na História com um elemento inédito, revolucionário e criador: a molecagem. Citei a brincadeira de Garrincha num final dramático de jogo. Era a molecagem. Aqueles quatro ou cinco tchecos, parados diante de Mané, magnetizados, representavam a Europa. Diante de um valor humano insuspeitado e deslumbrante, a Europa emudecia, com os seus túmulos, as suas torres, os seus claustros, os seus rios.
9 – Vocês assistiam, pelo vídeo-tape, todos os matchs. O europeu aparecia com uma seca, exata objetividade, sem uma concessão ao delírio. Ele próprio se engradava dentro de um esquema irredutível. Ao passo que o Brasil faz um futebol delirante. Numa simples ginga de Didi, há toda uma nostalgia de gafieiras eternas. O nosso escrete era vidência, iluminação, irresponsabilidade criadora. Só a Espanha é que chegou a lembrar o Brasil. Seu escrete parecia passional também. Mas logo se percebeu a falsa semelhança. Os espanhóis têm uma paixão sem gênio, uma paixão burra. Chegaram a nos ameaçar, por vezes. Veio, porém, um sopro da Praça Sete, do Ponto de 100 Réis, e Amarildo, o possesso, encaçapou dois.
10 – Contra a Inglaterra foi uma vitória linda. Não tínhamos rainhas, nem Câmara de Comuns, nem lords-nelsons. Mas tínhamos Garrincha. E tínhamos Zagalo, o de canelas finíssimas e espectrais. E Nilton Santos, com a sua salubérrima eternidade. E negros ornamentais, folclóricos, como Didi, Zózimo e Djalma Santos. Logo se viu, entre o nosso craque e o inglês, todo um abismo voraz. O inglês apenas joga futebol, ao passo que o brasileiro “vive” cada lance e sofre cada bola na carne e na alma. Djalma Santos põe, no seu arremesso lateral, toda a paixão de um Cristo negro.
11 – E mesmo fora de futebol, o europeu faz uma imitação da vida, enquanto que o brasileiro vive de verdade e ferozmente. Ninguém compreenderá que foi a nossa qualidade humana que nos deu esta Copa tão alta, tão erguida, de fronte de ouro. E mais: foi o mistério de nossos botecos, e a graça das nossas esquinas, e o soluço dos nossas cachaças, e a euforia dos nossos cafajestes. Jogamos no Chile com ardente seriedade. Mas a última jogada de Mané, no adeus aos Andes, foi uma piada, tão linda e tão plástica. Na mais patética das batalhas, o escrete soube brincar. Esse toque da molecagem brasileira é que deu à vitória uma inconcebível luz.
2 Comments:
Esse é o menino orgulho de pau-grande! (sem trocadilho, por favor.. uoAEHuoE)
Belo jogador que fez história com 2 mantos, o alvinegro e o canarinho.. esse tri mundial (58, 62, 70) deveria ter cópia das taças na sede de general severiano.. isso sim!
só pra constar: "(...) Mas tínhamos Garrincha. E tínhamos Zagalo, o de canelas finíssimas e espectrais. E Nilton Santos, com a sua salubérrima eternidade. E negros ornamentais, folclóricos, como Didi (...)"
-> engraçado né? mas dos 8 nomes citados na coluna, 4 dos mestres-do-futebol, são do Glorioso.. não preciso falar mais nada =]
ah.. a quem interessar, possa - tenho vários vídeos, reportagens, filmagens, etc, sobre garrincha e outros grandes craques do futebol mundial.. iria falar q tenho quase um almanaque, mas não seria certo.. já q só um dos jogadores q tenho material, se chama "enciclopédia"..
então, qualquer entendedor, conhecedor, e amante do futebol, devem procurar saber da história e da mística q envolvem o time da estrela solitária.. um dos 12 clubes do século, agraciado pela fifa =]
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